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Escola sem partido: a mordaça acadêmica (JOTA)

Escola sem partido: a mordaça acadêmica

Projeto visa a estabelecer uma lei leviana e hipócrita

Por Marco Antonio da Costa Sabino

 A censura está à espreita. A mais nova ameaça à liberdade de expressão atende por um nome: escola sem partido. A denominação pode dar a entender que se trataria de cooptação das salas de aulas por partidos políticos, que usurpariam aquele ambiente para disseminar sua ideologia e angariar novos quadros ou aderentes. Afinal, seria perfeito usar a autoridade do professor para conquistar votos e visões de mundo de um seleto público – os alunos. O problema de partida dessa tese é que ela considera ele e ela, os alunos, pessoas passivas e sem pensamento crítico, que se colocariam à mercê do proselitismo político oportunista.

Confesso que nutro certo incômodo por todas as teorias que, em geral, defendem que o Estado superpoderoso tem de salvar mentes inocentes e hipossuficientes dos males do mundo de plantão, sejam eles o capital, a diversidade ou, simplesmente, o dissenso. É uma conveniência autoritária que beira à vulgaridade. Seriam os “protegidos” seres humanos incapazes de se defenderem, precisando da tutela do Estado, monopolizador da força e da tributação, para desempenhar essa tarefa. Em vez de dotar esses humanos de mecanismos que permitam a autodefesa, apropriam-se ou terceirizam esse mister. Em vez de educar, censuram

A Comissão Especial da Câmara Federal constituída para analisar o projeto de lei designado escola sem partido aprovou o texto que, em suma, proíbe o professor e terceiros de usarem as expressões “gênero” e “orientação sexual” em sala de aula. Proíbe, também, o professor de fazer “(…) propaganda político-partidária em sala de aula”, ou incitar “(…) seus alunos a participarem de manifestações, atos públicos e passeatas.” O projeto ainda estabelece a obrigatoriedade de afixação de um documento enunciando os “deveres do professor” e, o mais incrível, diz que todas as vedações são aplicáveis também a livros e materiais didáticos empregados em sala de aula e provas de concurso para docente.

De modo impressionante, é exatamente o que está ocorrendo no Brasil. Não se trata do Afeganistão talibã que atentou contra a vida da menina Malala só porque ela ia à escola, ou da Alemanha nazista, que queimava livros em praça pública: é o Brasil, o país que há tempos pleiteia maior reconhecimento internacional nas Nações Unidas, que sempre sonhou em liderar esforços pela autodeterminação dos povos (e o fez recentemente, com a missão no Haiti) e que, em sua Constituição, consagrou como direitos fundamentais a liberdade de expressão intelectual e científica, além das liberdades de comunicação, de assembleia, de reunião, de filiação político-partidária e a igualdade de gênero. Do ponto de vista exclusivamente jurídico, o projeto de lei é inconstitucional. Viola, a um só tempo, todos esses direitos de liberdade negativa – aliás, de maneira, insisto, vulgar – de forma que um arremedo como esse não viverá por muito tempo na ordem de direito ora observada. O risco não é somente essa espécie de pensamento se tornar lei (inconstitucional). O risco é outro, e talvez seja ligado ao que efetivamente pretendem os defensores da ideia.

A escola sempre incomodou. Na PUC de São Paulo, é famoso e emblemático o episódio da invasão do campus da Rua Monte Alegre pela polícia nos tempos da ditadura, completados quarenta anos daquela triste, conquanto simbólica noite de setembro de 1977. Durante esse mesmo nefasto período, era normal a inclusão da soturna figura do censor dentro da sala, da censura ao conteúdo de livros e textos e, até mesmo, alega-se, a criação das disciplinas de Educação Moral e Cívica e Ordem Social e Política Brasileira, a OSPB (criadas e obrigatórias pelo Decreto-lei nº 869/69). Não, o escola sem partido não traz nada de novo; ao invés, traz a velha e desgastada, porém intrépida e atrevida censura.

Escola sem partido é o retrato de uma sociedade polarizada e dividida. Não fragmentada, mas dividida, representada mais ou menos pela seguinte ordem de pensamentos: a mim só me interessa conhecer o que me é simpático. Não tolero o desacordo, a discordância, o pensamento diverso ao meu. Tudo o que não é meu é imprestável e deve ser relegado ao esquecimento. Só o que é meu é a verdade, e todos os demais merecem saber essa verdade. Salvá-los-ei, destarte. A ideologia materializada em projeto de lei é tão perniciosa que ela atende os interesses de quem se coloca, em outras oportunidades, em lados diametralmente opostos. A Bancada Evangélica da Câmara foi a grande responsável pela aprovação do texto, mas o Movimento Brasil Livre também o apoia, tanto quanto setores dos mais variados matizes, cada um defendendo seu próprio interesse, o projeto atendendo a todos. Ele anda na linha do decreto paulistano que, em 2016, proibiu os taxistas de abordarem com seus passageiros assuntos “polêmicos” como religião, futebol e política (na época, escrevi para o blog do Global Freedom of Expression da Universidade de Columbia sobre o assunto[1]) – felizmente, a Prefeitura voltou atrás. Voltará atrás também a Câmara? Impedirá ela que prossiga essa sandice?

O projeto visa a estabelecer uma lei leviana e hipócrita. Leviana porque não é possível que congressistas, com suas tão bem preparadas assessorias, não saibam da flagrante inconstitucionalidade – é dizer, é grande a possibilidade de se tratar de estratégia eleitoreira, uma prestação de contas aos votantes que comungam desse tacanho pensamento; hipócrita porque tal lei jamais seria executável, é dizer, nunca atingiria os fins a que se presta – e isso por inúmeros motivos.

Primeiro porque os pensamentos e a cognição de alunos e professores não estão restritos ao ambiente da sala de aula. Não vivem em Atlântida, enclausurados e incapazes de se comunicar com o mundo exterior (que, afinal, está hoje ao alcance de um clique dado mesmo do banco escolar). O mundo fora da escola continuará apresentando as mesmas questões e dilemas pretensamente baníveis no escola sem partido, é dizer, o escola sem partido não coloca ninguém ou nada a salvo daquilo que julga problemático.

Segundo, pois é pressuposto da escola a liberdade acadêmica. A escola é o território que, por excelência, deve ecoar o pensamento. Andou muito mal o Ministério da Educação ao impugnar a disciplina de pós-graduação da Universidade de Brasília intitulada “O golpe de 2015 e o futuro da democracia no Brasil”, porque se alguém defende ter havido golpe naquele ano, todos tem que assegurar o direito dessa pessoa sustentar seu ponto de vista, ainda que não concordem a respeito. A escola que se posiciona como centro de pesquisa tem por essência assegurar a pluralidade de ideias e debates. A escola que não admite certos temas tratados em seus bancos deve declarar essas restrições a seus alunos. A instituição de ensino tem liberdade de definir sua grade acadêmica, sendo a tutela estatal restrita a assegurar ensino lícito de qualidade. O professor, em sala de aula, deve ter a prerrogativa de apresentar aos alunos determinado ponto de vista, e os alunos, em contrapartida, tem de saber que nem tudo o que fala o professor corresponde à verdade ou a todos os pontos de vista que circundam sobre determinado assunto.

Terceiro, porque apenas quem vive uma realidade paralela acha que é o professor que incita alunos a tomar parte de manifestações, ou que são eles fatores determinantes para o sucesso de tais empreendimentos. Essas pessoas não devem conhecem internet e redes sociais.

Quarto, porque afora as publicações, qual seria o método para assegurar o cabal cumprimento da lei, fosse ela aprovada? Contratar e disponibilizar um censor por sala de aula, que vigiaria o professor e aplicaria sanções caso ele resolvesse falar de Jean Bodin? Isso se parece muito com um negro período vivido na recente história deste País.

A censura embutida no escola sem partido é daquele tipo mais desavergonhado, que não faz cerimônia e logo aparece para proibir que ideias sejam disseminadas, pensamentos, formulados e a palavra, oral ou escrita, expressada. Essa censura não peca apenas pela qualidade própria de si mesma – simplesmente, ser censura –; peca, também porque ataca um território ontologicamente livre. Ronald Dworkin tem um texto belíssimo – Wy Academic Freedom? – em que discute porque a troca de conhecimento é tão fundamental para o aprimoramento da sociedade, e porque o território da sala de aula, da escola, da universidade tem de ser livres. Ali o conhecimento é, ao mesmo tempo, produto e resultado imediato, gerando resultados mediatos que são prodigamente experimentados pela sociedade. O escola sem partido espera pautar o debate acadêmico? Muito se engana: isso é impossível. O que é, sim, possível, e deve ser alertado, é a perigosa porta que ele abre para a censura entrar: ninguém quer um censor em sala de aula, um plano pedagógico com livros políticos excluídos, um professor demitido porque discutiu The Little Red Schoolbook em sala de aula.

Eu não acredito em coincidências. Boa parte deste texto foi escrito dentro de um avião, por mim dividido com o mais autoritário candidato à Presidência da República. Que interessante. Pensei que, graças a Deus, a Constituição é como é, e me permite, sendo professor, escrever este texto, ainda contra anseios censórios. Ela, a Constituição, é mais forte que o candidato e, melhor, muito mais forte que o escola sem partido. Que professores continuem disseminando seu conhecimento livremente em sala de aula.

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