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Fake news: a censura sorri no canto da sala (JOTA)

Fake news: a censura sorri no canto da sala

Por Marco Antonio da Costa Sabino

Sobre o anteprojeto de lei do Senado que criminaliza e estabelece sanções a quem cria ou divulga notícia falsa

Está marcada para hoje (05/03), no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, a discussão de anteprojeto de lei do Senado que criminaliza e estabelece sanções a quem cria ou divulga notícia falsa. Segundo a lei projetada, na essência, poderá ser criminalmente condenado aquele que criar ou difundir notícia sabidamente falsa e que possa distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre a saúde, segurança, economia nacional ou outro interesse público relevante. Esta alteração seria promovida no Código Penal e no Código Eleitoral. No chamado Marco Civil da Internet, o provedor de aplicações passaria a ser civilmente responsabilizado e sofreria multa de até 5% de seu último faturamento livre de tributos caso se negasse a derrubar conteúdo que não se adequasse a seus termos de uso ou política de privacidade, uma vez apresentada reclamação a respeito de certo conteúdo. Aplicações de internet “pertencentes a veículos de comunicação social” e aquelas com menos de dois milhões de usuários estariam alheias aos comandos legais, uma vez aprovados.

Com o devido respeito, o projeto de lei é acintosamente perigoso para a liberdade de expressão e seus corolários, a liberdade de informação e de imprensa. Há sérios problemas técnicos e inconsistências no projeto, mas é melhor focar em seu aspecto mais problemático: a potencialidade de autocensura por parte do veículo.

É desnecessário discorrer sobre o papel que as notícias falsas têm desempenhado na desinformação da sociedade. Hoje, cada pessoa é um veículo em potencial, cada qual consiste em provedor de mídia, cada indivíduo é capaz de fazer com que sua mensagem chegue a milhões de pessoas espalhadas nos quatro cantos do mundo. O perigo consiste precisamente na disseminação de informações que não sejam verdadeiras e, pior, não sejam intencionalmente verdadeiras, já que podem influenciar na formação da opinião alheia e, assim, conformar certos comportamentos ou destruir a reputação de alguém. Isso é básico. O poder destruidor da internet, em grande parte promovido pelas propaladas fake news, é hoje objeto de debate, reflexão e preocupação por diversos decision-makers. A vida contemporânea, marcada pela revolução comunicativa que todos assistimos a todo o tempo, possui alguns aspectos desabonadores, tóxicos, até, e as fake news são um subproduto desse processo. Querem outro? Basta procurar saber mais a respeito da deep webou do cyberbulling, da mídia programática que permite que marcas bem reputadas sejam exibidas ao lado de vídeos de pedofilia e terrorismo, dentre outros efeitos do lado obscuro da rede. Apesar de trafegar na mesma linha dessas outras patologias, as fake news possuem uma particularidade que as destaca: como manifestação do pensamento, ainda que ilegal, elas se encaixam na figura do abuso do discurso, ou abuso da expressão, é dizer, a expressão ilegal porque ultrapassou os limites do direito constitucionalmente assegurado de livre manifestação do pensamento. Encontra-se, portanto, no universo da liberdade de expressão. Do mau uso da liberdade.

O problema de tentar resolver o caso das fake news com uma canetada legal, criminalizando e punindo inclusive o veículo de divulgação, é a possibilidade concreta do denominado chilling effect, modalidade de censura colateral que ocorre quando aquele que teria a liberdade de se manifestar não o faz com receio de sofrer sanções. Funciona assim: o Facebook, por exemplo, deixaria de exibir em sua plataforma uma informação que não soubesse ser completamente verdadeira por receio de ter seus executivos processados criminalmente, condenados ou, ainda, sofrer sanção com base no faturamento. É preferível, nesse sentido, a cautela: na dúvida o veículo não divulga. Quem sofre? A liberdade de expressão. E se a informação não fosse falsa? E se ela contivesse, como disse Stuart Mill, meia verdade? Essa meia verdade não seria conhecida? Quem tem o direito de tolher o outro de conhecer parte da verdade? Diz a Constituição, é livre a comunicação, independentemente de censura ou licença. Em termos de liberdade de expressão, a Constituição possui uma série de salvaguardas, chegando a ser eloquentemente repetitiva, e arriscar-se-ia afirmar que tal repetição foi proposital, a julgar, inclusive, o período obscuro que a antecedeu. Não, não e não: censura não é admissível sob o pálio constitucional, seja qual for sua forma, seja qual for sua intenção, seja, ainda, quem for seu patrocinador.

A questão das notícias falsas ou, antes, da responsabilização do veículo pelas informações divulgadas já foi examinada pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Sullivan v. New York Times. Ali, a Corte Warren definiu que o veículo só poderia ser responsabilizado se divulgasse a informação com verdadeira e incontestável má-fé ou flagrante e inconsequente desconsideraçãona apuração da notícia. Se a notícia não fosse verdadeira, entendeu a Suprema Corte interpretando a Primeira Emenda, ainda assim o veículo não seria responsabilizado. Foi a consolidação de quase duzentos anos de interpretação dos exatos contornos à liberdade de discurso e de imprensa tutelados pela Primeira Emenda. Ao assim compreender, a Suprema Corte assegurou que não seria possível que o veículo fosse sancionado ainda que a notícia fosse falsa, mas desde que o veículo não fosse inconsequente ao divulgá-la. Evitou-se, assim, o mencionado chilling effect, num caso que poderia ter levado à quebra de um dos maiores jornais do mundo.

Não é possível criminalizar a divulgação de fake news, não é cabível que a lei fixe, sequer sob bom pretexto, a censura, efetiva ou potencial. A elaboração e a manipulação de informações é, deveras, deplorável, mas não é um ato normativo incriminador que vai resolver. O risco do remédio, no caso do anteprojeto de lei, é matar o paciente. Imagine-se que uma das interpretações possíveis para a legislação projetada é a de que o provedor de aplicações deva derrubar o conteúdo em vinte e quatro horas após apresentada reclamação: será que essa disposição não será palco para abusos e mais abusos, violações que podem implicar em autocensura por parte do provedor? Já se assistiu a episódios de ação orquestrada para fazer, ainda que indireta e reflexamente, com que o veículo se autocensurasse (é conhecido o caso das centenas de ações de magistrados distribuídas às comarcas do Sul do País contra o jornal Gazeta do Povo, que divulgou salários dos juízes). O projeto de lei em debate hoje no órgão assessor do Congresso Nacional possui esse potencial censório.

Quando um anteprojeto de lei como o que hoje será discutido no Conselho de Comunicação Social surge, a censura sorri. Ela, censura, que é sempre dissimulada, nunca se apresenta como tal, queda escondida. Fica sempre à espreita, aguardando por uma oportunidade de disfarçar-se e capturar um pretexto tema para, então, agir. No canto da sala do Conselho de Comunicação Social estará lá ela, censura, sorrindo, esperando pelo parecer de aprovação. Roga-se que o Conselho exerça seu papel de protetor das liberdades comunicativas, calando a censura e a defenestrando do recinto. Principalmente porque a imposição de sanções no caso das fake news não fará efeito sobre os reais disseminadores das notícias falsas, mas, ao invés, consistirá em pernicioso instrumento de tentativa de pautar a imprensa.

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