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Os efeitos da guerra fiscal entre os estados (Valor Econômico)

Muito se fala nos dias atuais sobre a chamada “guerra fiscal do ICMS”. Pouco se diz, no entanto, que a postura inconsequente adotada pelos entes federativos contribui para a perpetuação dessa guerra. Enquanto alguns Estados fazem brotar, de forma unilateral e muitas vezes camuflada, uma vastidão de atos concessivos de incentivos fiscais, outros Estados, sentindo-se prejudicados, editam normas, igualmente unilaterais, para combater tais benefícios concedidos à revelia da lei.
Em breves linhas, o ICMS, tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, grava as operações de circulação de mercadorias, serviços de comunicação e de transportes interestadual e intermunicipal.
Dessa forma, como meio de garantir a uniformidade, a harmonia entre os Estados federados e especialmente diante da possibilidade de uma operação ocorrida em determinado Estado gerar crédito oponível contra outro Estado, a Constituição reservou à Lei Complementar – norma editada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República – o regramento da “forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.”
A ideia – de todo simples e correta – era de que, centralizando no Congresso Nacional a produção legal relativa aos contornos do ICMS, tal modelo impediria a proliferação de disparidades, mantendo-se o equilíbrio entre os Estados da federação.
Assim, o texto constitucional recepcionou a quase totalidade da Lei Complementar nº 24/1975, que estatui ser necessária a aprovação unânime, no âmbito do CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária – composto pelos Secretários da Fazenda de todos os Estados do país, sob a presidência do Ministro da Fazenda), de todo benefício fiscal que reduza ou elimine a tributação por meio do ICMS.
Isto é, qualquer benefício fiscal em matéria de ICMS concedido por um Estado sem a prévia anuência de todos os demais é inconstitucional, por violar a LC 24/75 e seu fundamento de validade: a Constituição.
Nesse contexto, buscando invalidar incentivos concedidos sem o referendo do CONFAZ, desde 2004 o Estado de São Paulo tem reforçado a chamada “guerra contra a guerra fiscal”, cujo marco histórico é a edição da polêmica Portaria CAT nº 36/2004. Nela está contida uma espécie de black list dos incentivos fiscais concedidos por outros Estados e não reconhecidos pela Fazenda estadual. Na prática, os contribuintes paulistas que adquirirem mercadorias de empresas situadas naqueles Estados ficam sujeitos a autuações fiscais para a glosa dos créditos de ICMS, somados de acréscimos moratórios e multa.
E chancelando esse comportamento arbitrário do Fisco paulista, em 23 de junho deste ano, os juízes que compõem as Câmaras Reunidas do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, por 28 votos a 19, entenderam pelo não reconhecimento dos créditos de ICMS escriturados por diversos contribuintes, decorrentes de operações supostamente beneficiadas em outros Estados.
O posicionamento adotado pelo governo paulista se assenta sobre um plano político desgastado por longos anos de tentativas em obter, perante o STF, a punição dos Estados que concedem benefícios fiscais unilateralmente. É que, esquivando-se da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF – que se atém, por força constitucional e processual, ao ato normativo questionado –, muitos Estados apenas reeditam novas normas para continuar outorgando idênticos favores fiscais sob outra roupagem. Isso até que novo julgamento declare sua inconformidade à Constituição.
No entanto, os Estados alegadamente prejudicados nessa guerra, ao contrário de construir sistemas antiaéreos inteligentes, fundados na Constituição, e se proteger dos mísseis de benevolências fiscais projetados por outros Estados, passaram a usar táticas de guerrilha interna equivocadamente contra seus contribuintes, lançando mão de instrumentos próprios – à revelia do Poder Judiciário e do CONFAZ –, aparentemente mais “eficazes” no tradicional imediatismo de nossas políticas públicas.
Salta aos olhos o contrassenso das medidas utilizadas pela Fazenda paulista que, a pretexto de combater a edição de atos unilaterais (e inconstitucionais) publica atos, também unilaterais (e também inconstitucionais), com o objetivo de neutralizar as vantagens fiscais concedidas alhures, transferindo aos contribuintes o ônus da guerra fiscal.
Como vimos, as manobras intentadas pelo Fisco paulista desrespeitam diversos preceitos constitucionais, sobremaneira aquele que confere ao contribuinte o direito subjetivo de ver observada a regra da não-cumulatividade do ICMS, consistente, grosso modo, no direito de abatimento do montante devido em cada operação com o crédito do imposto que onerou a operação anterior.
A busca pelo consenso no âmbito do CONFAZ e a constante atualização de ações de inconstitucionalidade no STF, apesar de exigirem esforços consideráveis dos Estados, são as únicas armas legítimas conferidas atualmente pela Constituição Federal ao combate dos incentivos fiscais unilateralmente concedidos. Cabe aos Estados reconhecer seu papel na Federação e abdicar da chamada autotutela, sob o risco de, a pretexto de proteger sua arrecadação, contribuir para o enfraquecimento dos valores federativos erigidos na Constituição. Enfim, em português claro, ao usar as mesmas armas do adversário, São Paulo acaba por dar um tiro no próprio pé.
Breno Ferreira Martins Vasconcelos, sócio da área tributária do escritório Falavigna, Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.
Thais Romero Veiga, assistente da área tributária do escritório Falavigna, Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.

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