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Excepcionais, saúde e judicialização (VALOR)

Excepcionais, saúde e judicialização

A qualquer momento o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento dos recursos que discutem a eventual obrigação da administração em dispensar, gratuitamente, medicamentos excepcionais, entendidos tais como os de alto custo, que tratam doenças de baixa incidência populacional e não contemplados pelas políticas ordinárias de assistência farmacológica, cuja principal estratégia são as listas de dispensação obrigatória.
O tema em questão não poderia se dar em contexto mais dramático: os excepcionais são também denominados drogas-órfãs, porque os altos custos de produção versus a baixa incidência populacional da moléstia geram inviabilidade econômica que só é revertida pelo alto preço do medicamento, além de incentivos governamentais.
Os pacientes acometidos por doenças tais estão longe de constituir a maioria: ao contrário, o risco de serem eles excluídos dos planos e programas definidos pelos poderes majoritários é considerável. Esses pacientes podem ser sub-representados no jogo democrático, e aí que surge o Judiciário, com seu importante e inevitável papel contra-majoritário, para não deixar tais doentes à mercê dos interesses inerentes ao processo político.
O caso em debate no STF é diferente da imensa maioria dos processos que tratam do indiscutível problema da judicialização da saúde. Ainda que o tema tenha sido explorado ao longo dos últimos anos, principalmente nas altas instâncias, ainda prevalece em juízo o uso do que denominei “argumento linear”, baseado simplesmente em lógica jurídica fundada em silogismo linear para tratar de tema profundamente complexo. Segundo o argumento, se a saúde é direito fundamental e a Constituição assegura o direito de gozo de políticas e bens preventivos e curativos dispensados pelo Estado, então o Estado tem de ser condenado a prover tais bens ao jurisdicionado que deles for privado, sobretudo por omissão. Sendo assim, o STF deveria determinar ao Estado do Rio Grande do Norte que entregasse o citrato de sidenalfina à requerente.
A controvérsia não é tão linear, contudo, e os ministros já perceberam isso. O principal aspecto desse, que é um dos grandes problemas institucionais deste século, é a profunda assimetria de informações entre dois atores institucionais com instância decisória na política de medicamentos: o Executivo e o Judiciário.
A decisão judicial que ordena a entrega gratuita de qualquer medicamento, alheia às listas de dispensação obrigatória, impõe ao Poder Público demandado um inesperado ônus que o força a movimentações financeiras que podem deixar desatendidos os beneficiários de uma ou outra política. As listas fazem parte do planejamento da autoridade para cumprir a política farmacêutica do SUS, mas a pouca afeição dos juízes a temas técnicos sanitários contrasta com o alto grau de especialização dos definidores das listas. Não somente o caso de enviesamento da listagem para favorecer A ou B ou da ineficiência do Poder Público que fazem com que os magistrados desconfiem das listas – ao contrário, é de se presumir a legalidade do procedimento administrativo de inclusão nas listas, do nascedouro ao término -, mas seu próprio desinteresse de descortinar aspectos técnicos faz com que, no mais das vezes, o Judiciário não se alinhe com critérios eleitos pelo Executivo.
Essa natural incompatibilidade prejudica as políticas de saúde como um todo: aquele que estabelece como e onde aplicar os recursos – o Executivo – não é o mesmo que tem a palavra final – o Judiciário. O TCU apontou que, em sete anos, os gastos com a judicialização da saúde aumentaram 1000%, alçando, em 2015, um R$ 1 bilhão.
Há um claro desalinhamento entre as instituições. Se o Judiciário decide entregar um fármaco usando a técnica “command-and-control”, o Executivo rapidamente responde, seja descumprindo essa decisão, seja realocando recursos para fazer frente, seja, enfim, internalizando os custos da judicialização, é dizer, prevendo tais despesas para o próximo exercício, o que também implica, efetiva ou potencialmente, em desmantelamento das políticas estabelecidas. Se antes a judicialização da saúde era qualificada pela presunção de justiça da decisão, hoje não mais, ainda que haja casos em que a intervenção seja justificável.
É tempo de tratar o problema como se deve. Não basta apenas o diálogo entre juízes, administradores públicos e partes interessada, mas ao Executivo cabe gerir a saúde pública da melhor e mais eficiente maneira possível, e ao Judiciário respeitar mais essa atuação, agindo verdadeiramente de maneira excepcional. Essa não é uma tarefa para juízes – ou não deveria ser. Executivo mais diligente e transparente; Judiciário mais moderado.
Tomara que a decisão do Supremo sirva para trazer mais luz ao grave quadro da intervenção jurisdicional em políticas públicas de saúde.

Marco Antonio da Costa Sabino é sócio de Mannrich e Vasconcelos Advogados, pós-doutor pela Universidade de Coimbra, foi Academic Visitor na Universidade de Oxford. Professor do Ibmec, FIA, BSP e Fundação Dom Cabral.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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