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O CARF e seus vícios. (coluna Celso Ming, no Estadão)

O Carf e seus vícios
As irregularidades e, mais do que elas, a ineficiência do tribunal administrativo estão exigindo mudanças profundas
Celso Ming e Raquel Brandão
05 Janeiro 2017 | 21h00
A sigla soa estranha para as pessoas comuns. O Carf, ou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, foi criado em 2009 para unificar os conselhos de contribuintes da Receita Federal e acelerar processos que envolvem pendências tributárias. É a última instância administrativa onde pessoas físicas e pessoas jurídicas podem questionar autos de infração passados pela Receita Federal.
A rapidez, no entanto, envelheceu. Conforme avaliação do Tribunal de Contas da União, ao ritmo de hoje o estoque de processos – 119.287 até novembro – levaria 80 anos para ser julgado. Não dá para dizer que esse emperramento seja consequência apenas do mau funcionamento do Carf. Tem a ver com a barafunda da legislação tributária brasileira que pode, em princípio, dar ganho de causa a qualquer lado.
Os problemas do Carf ganharam destaque em 2015, quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Zelotes, conjunto de investigações sobre vendas de sentenças em favor de empresas.
As irregularidades e, mais do que elas, a ineficiência do Carf estão exigindo mudanças profundas. Há até quem venha sugerindo sua extinção, como o deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que para isso já conseguiu aprovação de projeto de lei na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara Federal.
É uma proposta radical que pode piorar as coisas. Se as questões tributárias só poderiam ser dirimidas na Justiça, tudo ficaria mais difícil, mais demorado e mais caro. Mal ou bem, o Carf funciona como filtro que se encarrega de julgar no âmbito administrativo grande parte dos recursos que desembocaria na Justiça.
Embora, nesse tribunal, o Fisco e os contribuintes sejam representados por número equivalente de conselheiros, a natureza dessa paridade vem sendo fortemente questionada.
A primeira disparidade está na remuneração. Os representantes dos contribuintes recebem salários mais baixos do que os representantes do poder público e substancialmente inferiores aos rendimentos de quem se dedica exclusivamente aos grandes escritórios de advocacia – e isso inibe o interesse pelo posto.
O conselheiro ainda enfrenta restrições que cerceiam sua carreira, como as de não poder atuar em processos contra a Fazenda e não poder julgar casos defendidos por escritórios em que trabalhou nos cinco anos anteriores.
“Pertencer ao Carf deixou de ser atraente. Por isso, seu conselho, como um todo, tem se tornado menos experiente”, aponta o advogado tributário Hugo Leal, sócio do escritório Souza, Cescon, Barrieu & Flesch. Na última divulgação feita pelo Carf, em novembro, das 22 vagas pendentes, 19 eram de representantes dos contribuintes.
A outra disparidade está no voto de qualidade. Quando um caso termina empatado, é o presidente do Carf, sempre funcionário da Fazenda, que decide. O resultado é novo desequilíbrio. De acordo com levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de dezembro 2015 até junho de 2016, 100% dos votos de qualidade foram favoráveis à Receita Federal.
Em caráter já conclusivo, está sendo analisado na Câmara dos Deputados projeto de lei que propõe o fim desse voto de Minerva. A proposta prevê que, nos casos de empate, prevalecerá a interpretação mais favorável ao contribuinte, mas admite a possibilidade de que a Procuradoria da Fazenda recorra à Justiça para questionar a decisão, o que hoje não é permitido.
A excessiva alteração da composição de turmas e os prazos reduzidos dos mandatos também são apontados como fatores de instabilidade e de oscilação da jurisprudência, como mostra a pesquisa da FGV.
No entanto, um dos pesquisadores, o advogado tributarista e ex-conselheiro do Carf Breno Vasconcelos acredita que o problema tenha sido iniciado antes: “A relação entre Fisco e contribuinte é marcada por litigiosidade. A Receita muitas vezes apresenta novos entendimentos e pega todo mundo de surpresa”.
Para Vasconcelos, a falta de sistematização e de transparência são as principais dificuldades do funcionamento do Carf, que, embora julgue questões tributárias bilionárias, trabalha com estrutura administrativa reduzida. Ele sugere que o Carf opere nos moldes do Cade; que se restrinja a julgar os maiores processos. Para os demais, propõe modelo tipo “fast track”, que englobe num só julgamento causas que dispõem sobre os mesmos assuntos.