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Conceito de trabalho escravo pode dificultar regulamentação de PEC (globo.com)

PEC sobre expropriação de terras precisa ser regulamentada para vigorar. Juristas, congressistas e governo divergem sobre ‘condições degradantes’.

07/06/2014 08h27 – Atualizado em 07/06/2014 08h27
Por Felipe Néri
Do G1, em Brasília

Apesar de a emenda conhecida como PEC do Trabalho Escravo ter sido promulgada nesta quinta-feira (5) pelo Congresso Nacional, divergências sobre o conceito desse tipo de exploração podem dificultar a regulamentação do texto.
Só depois que o novo artigo da Constituição for regulamentado é que poderão ser expropriados imóveis onde houver trabalho em condições análogas à da escravidão.
Pela emenda promulgada, propriedades rurais e urbanas com registro de trabalho escravo serão destinadas à reforma agrária e habitação popular, sem que o dono seja indenizado.

O texto da proposta, no entanto, estabelece que a vigência da norma depende de uma nova lei, que já está sendo discutida no Senado, mas ainda não tem previsão de quando será aprovada pelo Congresso e sancionada pela Presidência da República.

A regulamentação é necessária para definir a forma como ocorrerá a expropriação, explicitando, por exemplo, que depende de decisão judicial.
O projeto de lei que regulamenta a emenda tramita atualmente numa comissão de deputados e senadores que trata exclusivamente de trechos da Constituição que carecem de regulamentação. Após aprovado, o projeto vai para o plenário do Senado e depois para a Câmara.
Além dos processos para a expropriação, o relator da proposta na comissão, senador Romero Jucá (PMDB-RR), decidiu incluir em seu relatório uma nova definição para trabalho escravo. A mudança ocorreu após pressão da bancada ruralista no Congresso, mas não é consensual entre especialistas e parlamentares.

Código Penal
Atualmente, o Código Penal serve de base para julgar na Justiça ações envolvendo exploração de trabalho escravo.
De acordo com o artigo 149 do código, está na situação análoga à de escravo aquele que é submetido a “trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas”, sujeito a “condições degradantes” de trabalho com restrição dos meios de locomoção devido a dívida contraída com o empregador.
Romero Jucá decidiu retirar de seu relatório, que ainda será apreciado, os trechos com os termos “jornadas exaustivas” e “condições degradantes”.

O texto estabelece ainda que descumprimento de normas trabalhistas não pode ser enquadrado na lei. Por outro lado, o projeto inclui os casos de cerceamento do uso de meio de transporte e vigilância ostensiva no local de trabalho ou retenção de documentos.
Para representantes da bancada ruralista, os termos “jornadas exaustivas” e “condições degradantes” deixam de considerar especificidades do regime de trabalho do campo.
De acordo com o presidente da Frente Parlamentar Agropecuária da Câmara, deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), as expressões dizem respeito a questões trabalhistas que precisam ser acordadas com patrões, e não a trabalho escravo.

“Geralmente os sindicatos têm acerto sobre a forma de trabalhar. Nas épocas de colheita e plantio, três ou quatro meses, sempre tem jornada com mais de oito ou dez horas. Isso é considerado trabalho escravo. Quando o tempo está bom para trabalhar, há uma jornada maior. É difícil manter regularidade como a de outros trabalhos na agricultura, e os fiscais do trabalho veem isso como trabalho escravo”, disse Heinze.

Divergências
No entanto, o procurador-geral do Trabalho, Luís Camargo de Melo, considera a mudança no conceito de trabalho escravo um retrocesso.
Para ele, a alteração pode tornar o texto promulgado pelo Congresso inócuo. Na visão do procurador, a definição estabelecida pelo Código Penal brasileiro é avançada e dá embasamento para a execução das expropriações sem insegurança jurídica.
“Se alterar o conceito, pode não haver decretação da perda do bem, porque você não vai conseguir identificar o trabalho escravo contemporâneo. O que garantiu o avanço no combate ao trabalho escravo no Brasil foi a condição do ‘trabalho degradante’. Se for retirada a condição ‘degradante’ do Código Penal, a chance de a emenda se tornar inócua é enorme. Será uma grande retrocesso e uma vergonha para  Brasil”, declarou Camargo.

Atualmente, o país tem uma legislação considerada avançada em relação ao trabalho escravo. A Convenção nº 29, da Organização Internacional do Trabalho, de 1930, trata de medidas de combate ao “trabalho forçado obrigatório”, mas não cita “jornadas exaustivas” ou “condições degradantes”, como no Brasil.
“O Brasil é um país de boas práticas no trabalho e que tem uma história de enfrentamento, um exemplo”, disse o procurador.

Mas, para o professor de direito trabalhista da Universidade de São Paulo (USP)Nelson Mannrich, presidente da presidente honorário da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, o conceito usado no Código Penal é aberto e gera insegurança jurídica. “É por isso que ninguém vai para a cadeia por submeter alguém a trabalho escravo”, disse o professor.

Mannrich defende que a regulamentação estabeleça uma definição precisa para esse tipo de exploração, e especifique o que é um de trabalho degradante.

“Nós já avançamos muito no Brasil. O Código Penal é inibidor, elemento chave, e fez avançar o debate. Mas o que precisamos é dizer o que é exatamente trabalho escravo. O subjetivismo do conceito acaba criando impunidade”, afirmou o professor.

No Congresso, enquanto o senador Romero Jucá mantém uma definição diferente da que é válida hoje em processos criminais, o governo pretende pressionar para que o texto seja alterado. A intenção do Executivo é que a matéria trate somente do processo de expropriação, sem modificar o conceito de trabalho escravo.

Segundo o coordenador da área de trabalho escravo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, José Armando Guerra, o atual conceito é claro e objetivo.

“É um conceito que já foi considerado por tribunais superiores, tanto o [Tribunal Superior] do Trabalho quanto o Supremo Tribunal Federal. E é referência mundial, citado tanto pela ONU quanto pela OIT. Se mudar, vamos ter problemas, com recuos na garantia dos direitos humanos”, afirmou.
O texto que regulamenta a emenda está pronto para ser votado na comissão especial que analisa a matéria. No entanto, com a expectativa de pouca movimentação no Congresso nos próximos dias, a expectativa é que a proposta só seja votada após o recesso parlamentar, que começa em julho e termina em agosto.