Artigo

“Por que o STF não deve confiar no impacto de R$ 250 bi? (JOTA)”

Por Breno Vasconcelos, Tathiane Piscitelli e Maria Raphaela Matthiesen

Receita não sabe como chegou ao valor que fundamenta pedido de modulação no caso “ICMS PIS/COFINS”

Como se sabe, o STF concluiu, em março deste ano, o julgamento que foi por muitos chamado o caso tributário da década. No recurso extraordinário nº 574.076/PR, com repercussão geral reconhecida, os Ministros entenderam que “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.

Provavelmente antevendo a derrota iminente, pois o STF já havia julgado a mesma tese em favor dos contribuintes em 2014 [1], o representante da PGFN requereu, da tribuna, a modulação de efeitos de eventual decisão nesse sentido, sobre o argumento ad terrorem de que o provimento do recurso causaria impacto financeiro para a União de R$ 20 bilhões ao ano, R$ 100 bilhões nos últimos 5 anos e R$ 250 bilhões no período entre 2003 e 2014, o que, por sua vez, teria desdobramentos negativos nos orçamentos da saúde, da previdência e assistência social.

O total de R$ 250 bilhões corresponde à previsão de risco fiscal registrada no Anexo V – Riscos Fiscais, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2017 (Lei nº 13.408/16), para o julgamento do tema “PIS e COFINS. Base de cálculo, inclusão do ICMS”. A justificativa, na lei, estava limitada à seguinte informação: “A estimativa de cálculo é fornecida pela Receita Federal do Brasil e leva em consideração a perda de arrecadação anual e uma estimativa de impacto de devolução”.

Considerando que o impacto estimado na LDO é o ponto central do argumento da Procuradoria para requerer a modulação da decisão, e que os dados e critérios que o compunham não estão claros na LDO, valemo-nos da Lei de Acesso à Informação (LAI) para requerer o acesso a tais dados e critérios, em face da evidente publicidade da matéria. O primeiro pedido foi realizado em 05/04/2017, com o seguinte teor:

“Solicito (i) os dados numéricos e suas respectivas fontes que compuseram as estimativas de contingência indicadas no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei nº 13.408/2016 – documento anexo), relativamente ao Tema: PIS e COFINS. Base de cálculo, inclusão do ICMS, do item “Demandas judiciais contra a União de Natureza Tributária, inclusive previdenciária – PGFN, e (ii) os critérios ou fórmulas adotados, bem como suas justificativas, para o cálculo das estimativas de perda de arrecadação anual e de impacto de devolução”.

O requerimento foi indeferido sobre o fundamento manifestamente improcedente de que as informações solicitadas seriam sigilosas, por envolver dados pessoais dos contribuintes. Essa decisão ensejou nosso recurso à primeira instância, também indeferido sobre o mesmo argumento.

Em face disso, interpusemos recurso à segunda instância, demonstrando mais uma vez que as informações requeridas não tinham cunho sigiloso, pois sua publicidade não dependia da identificação das pessoas jurídicas sujeitas ao pagamento das contribuições. Solicitamos, pois, que os dados fossem fornecidos de modo agrupado, sem nenhum tipo de individualização de contribuintes.

Em 19/06/2017, o recurso foi então final e parcialmente provido, dando origem à Nota SIC Cetad/Coest nº 119, de 2017, com a seguinte redação:

“Em resposta ao questionamento do contribuinte, seguindo o mesmo critério adotado no pedido de acesso à informação nº 16853002638201731 (Nota SIC Cetad/Coest nº 103, de 01 de junho de 2017), informamos que o valor de R$ 250,3 bilhões informado no anexo de riscos fiscais da LDO corresponde ao período de 2003 a 2014, com valores atualizados para 2014. Para a realização do cálculo foi estimado que o ICMS representa 9,57% do valor do PIS/Cofins. Este percentual foi aplicado aos valores da arrecadação total do PIS/Cofins (excluindo-se as instituições financeiras) referente ao período de 2003 a 2014 (R$1.973,85 bilhões). O valor resultante de R$188,90 bilhões foi atualizado para 2014 pela SELIC, obtendo-se o valor final de R$ 250,29 bilhões”.

Leia a nota

Como se vê, a justificativa acima transcrita aponta que o montante de R$ 250,29 bilhões seria correspondente ao impacto que o reconhecimento da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS teria no período de 2003 a 2014. De acordo com a Nota, o ICMS representaria um “impacto de 9,57% no valor a ser recolhido de PIS/COFINS”.

Tendo em vista que a informação do percentual de 9,57 não contava com nenhuma explicação adicional a respeito dos fatores considerados para se chegar a ela, e apesar de termos realizado diversas simulações frustradas de cálculo reverso, transmitimos novo pedido de acesso à informação, para requerer especificamente: (i) os dados numéricos e suas respectivas fontes que compuseram a estimativa de ICMS correspondente a 9,57% do valor do PIS/Cofins, informada na Nota SIC Cetad/Coest nº 119/17, e (ii) os critérios ou fórmulas adotados, bem como suas justificativas, para o cálculo da estimativa de 9,57%.

Mais uma vez, nosso pedido foi negado, originando novo recurso à primeira instância.

No dia 1/9/2017 recebemos, finalmente, resposta fundamentada no Parecer nº 257/2017, da Assessoria Especial da Receita Federal, cujo teor é bastante esclarecedor. O Parecer acolhe nota interna elaborada pelo Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros e pela Coordenação de Estudos Econômico-Tributários (CETAD/COEST), que relata ter sido o percentual de 9,57 originalmente utilizado na “Nota Conjunta Copan/Copat nº 001, de 25 de janeiro de 2008”, “não constando do citado documento maiores detalhamentos sobre o cálculo dos valores apresentados e tampouco qualquer descrição metodológica referente à solicitação”.

Leia o parecer 257

Veja a nota Conjunta Copan 001

Além disso, descreve o périplo enfrentado também pela Receita Federal para resgatar as informações que subsidiaram as estimativas incorporadas ao Anexo Fiscal da LDO. Nesse sentido, informa terem realizado “incursões nos documentos em papel produzidos no ano de 2008” e buscas pelo setor de tecnologia “em eventuais arquivos digitais que permitissem recuperar a metodologia empregada pelos pareceristas na elaboração da referida Nota nº 001, de 2008”, todas sem êxito.

Assim, pelo surpreendente motivo de não existirem tais informações, foi negado o pedido de acesso aos dados numéricos e suas respectivas fontes, e os critérios ou fórmulas adotados para o cálculo da estimativa de 9,57%.

Para arrematar, o Parecer ainda transcreve o seguinte trecho da nota interna CETAD/COEST, que merece intenso destaque:

“Por fim, para aduzir as razões da utilização deste mesmo percentual nas estimativas referentes ao Anexo de Riscos Fiscais, cumpre registrar que este documento que acompanha a peça orçamentária no processo legislativo não possui o condão de demonstrar com precisão a composição das bases de tributação e tampouco ser utilizado como referência para aferir precisamente o efeito de eventuais decisões desfavoráveis ao Fisco. Tais estimativas objetivam sobretudo delimitar a ordem de grandeza aproximada dos valores referentes às demandas judiciais de natureza tributária e que podem impactar o exercício financeiro seguinte.”

Esse trecho final suscita diversos problemas. Em primeiro lugar, há um enorme equívoco por parte da Receita Federal ao assumir que o Anexo de Riscos Fiscais não deve ser utilizado como referência para aferir, com precisão, o efeito de decisões judiciais desfavoráveis para a União.

Nos termos do artigo 4o, parágrafo 3o da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, LC 101/2000), o objetivo do Anexo de Riscos Fiscais é avaliar “os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem”. Ou seja, trata-se de importante instrumento de equilíbrio orçamentário e previsibilidade das contas públicas. Essa afirmação é corroborada pelo fato de que a Lei Orçamentária Anual (LOA), por exigência da LRF, conterá reserva de contingência justamente para atender aos passivos contingentes discriminados na LDO (artigo 5o, inciso III).

Portanto, não se trata de mera formalidade, que indica valores aproximados que em nada condizem com a realidade. O objetivo da LRF, ao prever o Anexo de Riscos Fiscais e a correlação das suas previsões com a reserva de contingência prevista na LOA, foi o de assegurar maior estabilidade às finanças públicas, permitindo que o ente anteveja os possíveis riscos judiciais e realize contingenciamento de valores para fazer frente a tais riscos. Isso está bastante distante de uma simples “estimativa” que delimite a ordem de grandeza “aproximada”; a LRF exige valores reais e apurados mediante metodologia sólida e coerente.

De outro lado, a nota interna da Receita assume que os valores constantes do Anexo de Riscos Fiscais não são passíveis de refletirem o real prejuízo da União. Inclusive porque sequer é possível demonstrar a pertinência do cálculo: diante das informações prestadas, o percentual de 9,57 como sendo equivalente ao montante de ICMS computado na base de cálculo do PIS e da Cofins é injustificável e aparentemente desprovido de qualquer fundamento jurídico relevante.

Isso tudo coloca sob suspeição a integridade dos argumentos submetidos pela União aos Ministros do STF. Como agora se constata, a Fazenda, ao formular verbalmente pedido de modulação em virtude do conceito vago e indeterminado de “interesse social”, tomou por verdadeiro dado não demonstrado e construído sobre critérios e metodologia desconhecidos pela própria Administração.

Nesse jogo de números, o foco volta-se sempre à sensação de caos provocada pelos riscos sociais que valores tão impactantes trariam à continuidade do Estado, e não à solidez e certeza das informações que deveriam lastrear a excepcional modulação de efeitos das decisões proferidas pelo STF.

Diante de todo o exposto, é evidente que os números indicados no Anexo de Riscos Fiscais da LDO de 2017 – e utilizados pela Procuradoria no julgamento do RE 574.706/PR – não podem ser parâmetro nem fundamento para o STF modular os efeitos da decisão que reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.

Caso assim pretenda fazer o Supremo, deve enfrentar a integridade dos argumentos levantados pela Fazenda. Admitir como verdadeiro um prejuízo cujo cálculo sequer a Receita Federal consegue explicar equivale a ignorar as funções das leis orçamentárias e legitimar alegações desprovidas de qualquer senso de realidade.

A análise mais detalhada sobre todas as questões aqui levantadas será publicada em breve, em uma revista jurídica especializada, na forma de um artigo mais extenso. O objetivo é discorrer com profundidade sobre o tema, especialmente sobre a relação entre os fundamentos dos pedidos de modulação e a construção dos anexos de riscos fiscais das leis orçamentárias.

Por ora, no entanto, julgamos que a divulgação dos elementos aqui trazidos seriam relevantes não apenas para os profissionais de direito tributário, mas para a sociedade em geral.


[1] RE 240.785/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 8/10/2014, DJe 15/12/2014.

Breno Ferreira Martins Vasconcelos – Pesquisador e Professor da FGV Direito SP. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Advogado.

Tathiane Piscitelli – Professora da FGV Direito SP e coordenadora do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da mesma instituição.

Maria Raphaela Dadona Matthiesen – Especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Advogada.

Os artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade de ideias.

 

Crédito da imagem: Dorivan Marinho/SCO/STF