Artigo

Queer Museu, La Bête, Toulouse-Lautrec: classificação indicativa? (JOTA)

Queer Museu, La Bête, Toulouse-Lautrec: classificação indicativa?

É necessário a imediata reforma da normatização da Classificação Indicativa, de modo a aclarar as coisas

Em 16/3 de 2018, o Salão Negro do edifício sede do Ministério da Justiça sediou uma das melhores, mais ricas e plurais discussões sobre tema bastante importante para a liberdade de manifestação da expressão artística e cultural, de um lado, e a proteção de crianças e adolescentes, de outro: a classificação indicativa1. Mencionada na Constituição, no ECA e em outros documentos normativos, notadamente a Portaria nº 368/2014 do Ministério da Justiça, a Classificação Indicativa esteve muito em voga em 2016, em virtude do julgamento da ADI 2404-DF, ocasião em que o Plenário do STF julgou inconstitucional a imposição de sanções a veículos de comunicação que não programassem suas atrações de acordo com a respectiva classificação, como previsto no ECA. A partir dali, não havia dúvida a respeito de algo que parece um pleonasmo: a classificação de obras de entretenimento, espetáculos e diversões públicas não vai além do que estabelece seu próprio nome – ela é indicativa.

Desde dado julgamento, contudo, o Ministério da Justiça – a quem incumbe a guarda da Classificação Indicativa – não havia revisitado quer sua normativa, quer seu entendimento. O Manual e o Guia Prático da matéria continuam os mesmos. Some-se a isso a vertiginosa digitalização das comunicações, coisa que cresce e se diversifica em dimensão exponencial, o que motivou a realização do debate. Mas uma calorosa e tormentosa questão, que acirrou as discussões principalmente no ano passado, esteve no centro do evento e ocupou o terceiro painel do dia: A inserção da classificação indicativa em museus, teatros e outros espetáculos abertos ao público. Naquela ocasião e participando daquele debate, expus as ideias que aqui explorarei, e que, em conjunto com os outros excelentes convidados que me acompanharam, constituíram o entendimento mais ou menos comum àquela mesa.

A Classificação Indicativa possui três pilares, ou três variáveis determinantes para identificar qual o público-alvo ideal para determinada obra: violência, sexo/nudez e drogas. Variando de grau e intensidade, a presença de elementos desse tripé indica que a obra vai desde a classificação de livre até a mais rigorosa, a inadequada para menores de dezoito anos. Sendo indicativa, a classificação serve como orientação, dado que auxilia a escolha de certo conteúdo da maneira mais informada possível. No caso de artes, a insegurança jurídica provocada pela Portaria nº 348/2014 e as decisões de: (i) antecipar o fim da exposição Queer Museu em Porto Alegre; (ii) prosseguir a exibição da performance La Bête no MAM, em São Paulo, mesmo após controvérsia e pesadíssimas acusações nas redes sociais; e (iii) condicionar o ingresso, no MASP, apenas a maiores de 18 anos na exposição Histórias da Sexualidade – para, dias depois, voltar atrás e permitir a frequência desse público, desde que acompanhadas pelos pais ou responsáveis – mostram a incerteza dos curadores das mostras em lidar com a Classificação Indicativa – sobretudo uma Classificação Indicativa voltada para o audiovisual, que em nada parece auxiliar a expressão artística, embasada em uma Portaria também confusa quando trata do tema.

De fato, a Portaria nº 368/14 expressamente exclui da Classificação Indicativa exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como circenses, teatrais e shows musicais, mas estabelece a necessidade de autorização expedida pelo órgão competente. É preciso lembrar do inciso IX do artigo 5º da Constituição, que protege a liberdade de expressão artística, científica, cultural e de comunicação independentemente de censura ou licença. A necessidade de tal “autorização” é inconstitucional, mas o que podem fazer os museus ou teatros? Some-se a isso o também inconstitucional artigo 8º da mencionada Portaria, que dá a entender que nem mesmo os pais podem acompanhar seus filhos menores de 18 anos na frequência de obras não indicadas a essa faixa etária – como entendeu originalmente o MASP em História da Sensualidade. Tais inconstitucionalidades não declaradas expressamente causam insegurança, insegurança que merece ser debelada, não exatamente pela pena da caneta, mas pela força da razão

Proponho que a razão seja formada a partir da resposta a três inquirições: (i) quem é o responsável por avaliar a(s) faixa(s) etária(s) de exposições, obras e espetáculos? (ii) o acesso a esses conteúdos pode ser restrito a determinados públicos, ainda que acompanhados de pais ou responsáveis; e (iii) as normas vigentes da Classificação Indicativa seriam suficientes para orientar o decisor nesse papel?

Afinal, será que tudo o que é exposto em museus é arte, tudo o que é performado com alguma especialidade nas ruas é espetáculo, tudo o que se encena no teatro é peça? Difícil questão, e para a qual não há resposta conclusiva. Para ilustrar a dificuldade, tome-se o exemplo das definições de pornografia e obscenidade nos Estados Unidos. Em 1990, o Contemporary Arts Center, em Cincinatti, sediou uma exposição do fotógrafo Robert Mappletorphe. A exposição ocorreu com a assunção, pela curadoria, do risco de sanções, haja vista o conteúdo da exposição. A galeria e seu diretor, Dennis Barrie, foram processados por obscenidade. Depois de sete meses de uma mobilização muito intensa da conservadora sociedade civil, o júri os absolveu com base na Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que consagra, dentre outras liberdades, a de expressão. H. Louis Sirkin, advogado, declarou que o julgamento do caso Mappletorphe era uma resposta para todos aqueles que pretendem calar museus e ditar o que as pessoas devem ver e o que elas devem falar2.

Casos como o de Mappletorphe nunca foram temas fáceis para a Suprema Corte dos Estados Unidos, sobretudo nos anos 1960 e 1970. Potter Stewert, em Jacobellis v. Ohio (378 U.S. 184, 1964), estabeleceu a famosa construção de que não conseguia definir pornografia, mas sabia exatamente quando estava defronte de uma (I know it when I see it). No caso, o filme Les Amants foi entendido como obsceno e proibido – mas não por Stewert, que dissentiu. A decisão aplicou o Roth Test (Roth v. United States, 354 U.S. 476, 1957), em que sempre será obsceno o conteúdo que apela para sexualidade de acordo com padrões do senso comum do homem médio. Depois, em Miller v. California (413 U.S. 15, 1973), a Suprema Corte mudou sua compreensão, e o Miller Test visava a inquirir se a obra padecia de valores sociais, sendo seriamente desprovida de interesse literário, artístico, político e científico.

Como afirmou Dworkin, pornografia frequentemente é grotesca e de mau gosto, mas isso não nos autoriza bani-la em absoluto apenas e tão somente porque dissentimos dela A essência da liberdade de expressão é a liberdade de ofender, e isso se aplica tanto ao sórdido quanto ao heroico3. Isso porque haverá sempre aqueles que a apreciam ou são a ela indiferentes, e censurar a pornografia seria menoscabar o conhecimento a respeito de seus conteúdos, suas formas, sua (ir)relevância. Mesmo os que a entendem como de mau gosto só podem manifestar essa compreensão porque, um dia, tiveram contato com a pornografia.

O problema, em Roth, pode ser encontrado em algo que Descartes apontava: a grande fraqueza do senso comum como argumento é que todos acham que tem o bastante e que, assim, não se preocupam em obtê-lo mais. Em Miller, é a definição do que consiste algo seriamente desprovido de interesse literário, artístico, político e científico. Quem decidirá o que é o senso comum e quem definirá o que é um pedaço de algo tão inservível que seja gravemente (note-se a qualidade) desprovido de interesse literário, cultural, artístico ou científico? O risco reside precipuamente, penso, na definição estatal, inclusive pelo Ministério da Justiça. Em que pese o excelente conhecimento do corpo técnico da Classificação Indicativa, parece que a solução mais razoável é aquela que entrega ao curador da mostra ou responsável pela obra o poder de definir para que públicos aquele conteúdo não é indicado, independentemente de consulta mandatória a qualquer órgão. É ele, que estabelece o que será apresentado dentro de seu âmbito de livre iniciativa e livre expressão cultural e artística, ele quem estará em melhor condição de explorar todo o potencial artístico e cultural da obra, ele que poderá compreender melhor a finalidade da mensagem que quer passar. Só precisa informar. Antes de ingressar em um recinto em que ocorre a performance de um homem nu, o visitante tem de saber, para, querendo, entrar ou não. O direito à informação do atingido pela obra é inalienável e tem de ser provido pela curadoria, inclusive em respeito à legislação do consumidor. Essa prerrogativa é do curador que, se tiver dúvidas, poderá recorrer ao Estado para que o auxilie na tarefa. Se ocorrer abuso, o Judiciário sempre poderá ser chamado a aplicar o bom direito. Respondendo à primeira indagação, o curador ou responsável pela obra é quem deve definir a(s) melhore(s) faixa(s) etária(s) a que elas se destinam.

Indo adiante, o acesso aos conteúdos culturais e artísticos não pode ser vedado, em absoluto, a quem seja menor de determinada idade e esteja acompanhado de seus pais ou responsáveis e, nesse sentido, a primeira decisão do MASP foi equivocada, em que pese a Portaria aplicável. Agir assim é transformar a Classificação Indicativa em obrigatória, e aí entrar-se-á no campo da censura, contrariando a decisão do STF no caso aqui já indicado. Crianças e adolescentes têm a prerrogativa de obter conhecimento, de serem expostos a certos conteúdos, de sorverem determinadas experiências se autorizadas por seus pais ou responsáveis, e desde que sob sua supervisão e acompanhamento. É dos pais o poder de decidir pela educação e cuidado de seus filhos, cabendo à sociedade e ao Estado um papel secundário, lateral, subsidiário nesse tutela – essa, a melhor leitura do artigo 225 da Constituição. Sendo os pais informados, nada os impede de levar os filhos de 9 e 11 anos a uma sessão de cinema de um filme que seja indicado para maiores de 16 anos. Com as demais artes ocorre da mesma forma.

Por fim, é evidente a utilidade da Classificação Indicativa, mas não a que está hoje na praça. A sexualidade, por exemplo, é da arte. A violência, a agressividade, esses itens são da natureza humana – de crianças, inclusive – e, como tais, artisticamente retratados. Em suas obras, alguns artistas provavelmente dão vazão a seu pior lado – e ninguém poderá censurá-los. Contudo, é desproporcional classificar uma peça de teatro como se fosse obscena se há apenas uma tomada em que aparece um nu frontal. A Origem do Mundo de Courbet não pode transformar um museu inteiro em inapropriado para menores de 16 anos. A lógica das artes em exposições, performances, peças, dentre outras, é diversa da lógica do audiovisual, e seria muito importante que houvesse uma normativa para orientar os curadores, normativa essa que, no meu sentir, se daria de maneira mais eficaz e próxima por meio da autorregulação, em um debate plúrimo, democrático e apropriado.

De toda forma, é necessário a imediata reforma da normatização da Classificação Indicativa, de modo a aclarar as coisas, definir as competências como elas devem ser e debelar inconstitucionalidades.

—————————–

Apud de CARTER, Cynthia e WEAVER, C. Kay. Violence and the Media, Philadelphia: Open University Press p. 100.

Download